A popularização do Espiritismo no Brasil levou, com o passar dos anos, a que muitas pessoas tivessem da Doutrina Espírita codificada por Allan Kardec uma visão limitada, como se ela fosse mais uma seita ou corrente religiosa no âmbito do Cristianismo. Percebe-se em algumas casas espíritas uma tendência ao igrejismo, à rigidez de procedimentos e até mesmo ao estabelecimento de rituais, em completo desacordo com o preconizado pelos mensageiros espirituais que transmitiram a Kardec, por intermédio de centenas de médiuns em muitos países, as bases da Doutrina e a universalidade do ensino dos espíritos.
É preciso que nós, espíritas, jamais percamos de vista os fundamentos da Doutrina que abraçamos. Esses fundamentos, como já ressaltado de início, encontram-se nos livros da Codificação e conferem à Doutrina três aspectos: o filosófico, o científico e o religioso. O aspecto filosófico trata de buscar as causas primeiras e responder aos porquês, de estudar as finalidades e as motivações dos fenômenos espíritas, situando-os no contexto de toda uma cosmogonia cambiante porque evolutiva. Esse aspecto constitui o pilar central do Espiritismo e nos remete à presença da Inteligência Suprema, causa primária de todas as coisas. O aspecto científico veio nos trazer a informação sobre a maneira como os fenômenos acontecem, com a utilização dos mesmos métodos indutivo e dedutivo utilizados pelas ciências físicas e biológicas, à época em pleno amadurecimento.
Tratando agora do aspecto religioso, é interessante que nos detenhamos brevemente sobre a origem da palavra religião e sobre os significados e os entendimentos que ela ensejou ao longo da história. A palavra religião, como sabemos, tem sua origem etimológica no verbo latino “religare” e seu significado lato em português não requer maiores elaborações. A questão que se coloca é sobre a espécie de religação de que estaríamos tratando.
Para as religiões cristãs tradicionais, o ser humano estaria, a partir do milagre da criação, ligado a Deus por sua própria natureza. Lamentavelmente, o pecado original (expressão interessante, que poderia ser tema de outro artigo) teria vindo interromper essa comunhão. A ligação entre o ser humano e a Divindade somente poderia ser restabelecida mediante o sacramento do batismo.
Para a Doutrina Espírita, o ser humano, assim como tudo que existe no universo, jamais deixou de estar ligado à Divindade pela sua própria origem. Na verdade, com a aquisição da consciência (esse, no meu entendimento, o verdadeiro pecado original) que o distingue dos demais seres vivos, o ser humano descobre sua finitude e passa a propor a si mesmo as questões existenciais que todos conhecemos muito bem.
É a partir desses questionamentos e das respostas correspondentes que a religação com a Divindade foi ganhando existência nas mentes e nos corações dos integrantes da espécie humana. É precisamente a essa religação que a Doutrina Espírita alude ao estabelecer o seu terceiro aspecto, a partir dos outros dois, o filosófico e o científico.
O verbo religar, por conseguinte, não carrega aqui o significado de refazer uma ligação que em algum momento teria sido desfeita, muito ao contrário. O aspecto religioso do Espiritismo tem a ver com o estabelecimento da ligação com a Divindade em outro nível, mediante o uso da nossa inteligência e consciência, para compreender e assimilar o verdadeiro sentido de nossa breve permanência como seres encarnados neste planeta. Isso explica as palavras basilares de Allan Kardec sobre a fé inabalável como sendo somente aquela capaz de encarar a razão face a face, em todas as épocas da humanidade.
Tal entendimento lança por terra qualquer tipo de dogmatismo ou facciosismo religioso, uma vez que reconhece e estimula a prática do questionamento a todos os princípios, inclusive dos princípios doutrinários. Esse pensamento também foi externado por Kardec, ao estabelecer que se qualquer enunciado espírita for modificado pela ciência, essa nova posição deverá ser incorporada à Doutrina.
Somos seres em evolução e a cada dia andamos alguns passos em nossa caminhada rumo ao infinito. Nessa jornada, é importante sabermos com precisão o nosso destino, pois quem não sabe para onde quer ir tem uma alta probabilidade de não chegar a lugar algum. A Doutrina Espírita é guia preciosa nessa marcha para muitos seres humanos presentemente encarnados neste nosso querido planeta. Para praticá-la e vivê-la em sua plenitude, é importante que seus princípios basilares sejam bem compreendidos e assimilados. Entender a Doutrina Espírita embasada em seus três aspectos, conforme o legado do Codificador, certamente contribuirá para o fortalecimento de nossa própria Fé raciocinada.
por Décio Luís Schons Cruzado 5418
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