Revista Nr 40 – Paulo e o Cristanismo

Paulo e o Cristanismo

Frederico Guilherme Kremer
Cz 5.200

As tradições religiosas do Judaísmo, nos dias de Jesus, já eram bastante antigas. O povo eleito ostentava, mesmo nas classes mais pobres, um compreensível orgulho decorrente da consciência que tinha da nobre missão a ele destinada por Deus: testemunhar o monoteísmo. Como guardião da promessa, estabeleceu, ao longo do tempo, várias alianças com Deus, referenciadas nas Escrituras e sustentadas por várias profecias. Como consequência, o povo acreditava na retribuição divina a essa fidelidade, o que lhe permitiu enfrentar largos períodos de miséria, aflição e dominação impostas por outras nações, na certeza e esperança na Salvação e na justiça que se manifestaria, punindo os infiéis no Juízo.

Evidentemente que tradições tão antigas tenham sofrido a interferência dos homens e, principalmente, criassem um modelo mental de religiosidade. Eram muitas as prescrições (mais de 600) para a criatura demonstrar religiosidade e reverência a Deus, catalisando um cenário ideal para o desenvolvimento de uma religiosidade
exterior e superficial, e um código de “pureza” que separava coisas e pessoas, em puras e impuras.

No seio desse povo, Jesus nasceu, viveu e ensinou uma nova filosofia  de vida, exemplificando o amor invencível e estabelecendo as diretrizes espirituais para nossa felicidade, baseadas na misericórdia, na bondade, na abnegação, no serviço e na confiança ilimitada do amor de Deus por nós. Assim, era natural que a nova mensagem, a “Boa Nova”, sustentada em valores interiores ou espirituais, enfrentasse reações das criaturas imantadas ao modelo mental vigente. Quantas vezes o Mestre contrapôs suas ideias ao proceder dos sacerdotes fariseus, muito preocupados no “aparentar” e, não, no “ser”. Oportuno lembrar que, ainda hoje,
encontramos o mesmo espírito farisaico nas escolas religiosas de diferentes denominações, fazendo disseminar o vírus da hipocrisia.

Percebendo a natural dificuldade das criaturas de aceitarem o novo modelo de religiosidade, pois implicaria em uma renovação mental que sempre é um difícil processo de transformação, Jesus procurou alertar que o Cristianismo não poderia sofrer adaptações que poderiam limitá-lo ou circunscrevê-lo, reduzindo o seu
campo de ação universalista. Em Cafarnaum, na Galileia, ensinou com simplicidade, utilizando elementos da vida comum, sobre os obstáculos que o Cristianismo enfrentaria, como encontramos no capítulo 2 do Evangelho de Marcos: “ Ninguém costura remendo de pano novo em roupa velha; do contrário, o remendo novo leva um pouco da roupa velha, e fica maior a rasgadura. E ninguém guarda vinho novo em odres velhos, do contrário o vinho fará arrebentar os odres e perde-se o vinho e os odres. Vinho novo deve colocar-se em odres novos.”1

As preocupações do Mestre eram fundamentadas, visto que o maior perigo que a flor tenra do Cristianismo nascente sofreu, no século I d.C., foi o de tornar-se uma seita judaica. O judaísmo da época estava longe de ser monolítico, desdobrando- se em algumas correntes principais e várias seitas menores. O Cristianismo poderia ser mais uma delas, e motivos não faltavam.

Destacamos, por exemplo, o acontecimento da Festa de Pentecostes, realizada cinquenta dias após a morte de Jesus (Pentecostes significa cinquenta em grego), e registrado em Atos dos Apóstolos. Cerca de 120 discípulos reuniram-se no pátio dos gentios do Templo de Jerusalém e começaram a anunciar o Cristo ressurreto aos judeus da Diáspora, que viviam da Babilônia a Roma, e que lá se encontravam para participarem da festividade. O destaque do acontecimento foi a maneira como os
discípulos falaram, utilizando a língua da região de origem de onde cada um provinha, através da mediunidade catalogada pelo Espiritismo como xenoglossia.  Registramos que os judeus da Diáspora representavam cerca de 70 % da comunidade.

Ao ser disseminado, inicialmente, no meio judeu da Diáspora, menos ortodoxo pelo contato com a cultura greco-romana, o Cristianismo sofreu um grande risco, embora, por outro lado, ao ser confundido com o próprio Judaísmo pelos romanos nos primeiros anos, teve o beneficio de usufruir da mesma política tolerante concedida pelo Império aos judeus.

Coube ao grande apóstolo Paulo, percebendo que os rituais judaicos começavam a ser adotados e seguidos, identificar os problemas potenciais que pairavam na vida da comunidade cristã nascente. Recordemos que a aguda percepção de Paulo era decorrente da sua própria experiência anterior como doutor da lei. Assim, envidou todos os seus esforços e energias para “não costurar remendo de pano novo em roupa velha”, contribuindo decisivamente para a sobrevivência da mensagem nascente. Paulo teve que agir rapidamente.

São bem estudados os fatos que ocorreram no chamado “Concílio de Jerusalém”, realizado por volta do ano 49, e que foram registrados nos Atos dos Apóstolos e comentados, em cores mais vivas, pelo próprio Paulo na sua Epístola aos Gálatas, relatando as pressões  impostas pelos companheiros judaizantes. Por sua importância, também mereceu esclarecedoras referências de Emmanuel no livro “Paulo e Estevão” 2 , da lavra mediúnica de Francisco Cândido Xavier. A partir desse momento de crise, resolvida pela sabedoria inspirada do apóstolo Pedro, Paulo dedicou sua vida, integralmente, ao serviço da divulgação do Evangelho aos gentios.

Pela ação de Paulo, como também pela destruição de Jerusalém, no ano 70, pelos exércitos romanos comandados por Tito, o perigo foi afastado. O rompimento com o Judaísmo foi gradual e consolidou-se no início do século II criando, entretanto, novos perigos, pois o Cristianismo começou a ser visto como uma seita ilegal e causa dos males que assolavam o Império, por não renderem culto aos deuses pagãos.

A figura fulgurante de Paulo está ligada diretamente ao rápido desenvolvimento do Cristianismo. O seu legado é inquestionavelmente rico, tanto através das suas Epístolas, que representam parte considerável do Novo Testamento e sustentam toda a teologia e filosofia cristã do Ocidente e do Oriente, quanto da sua personalidade cativante, que manifestava a sua grandeza espiritual.

Gostaríamos de destacar o seu esforço na luta por sua renovação interior. Escrevendo aos Romanos declarou, expondo as suas angústias mais profundas: “Porque não faço o bem que quero, mas o mal que não quero, esse faço.”3 Paulo tem sido referência e modelo para muitos. Santo Agostinho, por exemplo, converteu-se no ano 386, inspirado no seu testemunho. É comovente a sua conversão, ocorrida no famoso encontro com Jesus, a caminho de Damasco. Educado nos rigores da lei judaica, tornando-se uma das suas mais expressivas referências, teve que demolir o seu modelo mental para reconstruir um novo. Bem sabemos como este processo é difícil. No caso de Paulo, ele teve que passar três anos no Oásis de Dan, reestruturando-se mentalmente, antes de iniciar o seu apostolado. Por fim sabemos que, quando um sistema novo de ideias é exposto ao público, principalmente se de ordem elevada, existe uma tendência natural de surgirem interpretações diferentes, decorrentes da diversidade de visões que podem até distorcê-lo. O próprio Cristianismo foi dividido em várias escolas ou correntes, principalmente no século IV. Paulo, entretanto, soube captar a essência da mensagem cristã. Na sua primeira carta aos Coríntios, reservou um capítulo para exaltar a importância da caridade, como amor em ação. O texto, de rara beleza, também foi estudado por Allan Kardec, no capítulo XV – Fora da Caridade Não Há Salvação – de “O Evangelho segundo
o Espiritismo”.

Encerramos o nosso comentário com as palavras finais do Hino à Caridade: “Agora, estas três virtudes: a fé, a esperança e a caridade permanecem, mas, dentre elas, a mais excelente é a caridade.”

Referências

1 BÍBLIA. N.T. Marcos. Cap. 2, vers. 21-22.

2 XAVIER, Chico. “Paulo e Estêvão”, pelo Espírito Emmanuel. 24a ed. FEB, 1941.

3 BÍBLIA. N.T. Epístolas de S. Paulo aos romanos. Cap. 7, vers. 19.

O autor é expositor na cidade do Rio de Janeiro, RJ e Diretor do Abrigo Teresa de Jesus.

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